Depois de muitas recomendações, fiquei rendida pelo fofíssimo Heartstopper. Nos últimos dias rolou muito conteúdo pesado, muita notícia pesada e outras simplesmente estúpidas. Foi com uma sensação de esperança que assisti ao desenrolar do romance adolescente entre Charlie, um introvertido garoto de 15 anos assumidamente gay, e Nick, o atipicamente gentil capitão do time de rúgbi que se apaixona por Charlie e se assume bissexual. Aqueceu esse meu coração desesperançoso. Também vai aquecer o seu nesse mês do orgulho LGBTI+.
Há uma outra produção audiovisual brasileira que também tem aquecido o meu coração: Pantanal. Um pouco por causa do romance. Um pouco por causa da fantasia. Mais pelo conjunto da obra e aquela sensação familiar gostosa do ritual brasileiro noveleiro.
Gostaria muito que o roteiro fosse mais atualizado. Imagina um Brokeback Mountain Pantanal edition. Imagina um Velho do Rio xamã indígena misterioso tipo o Abraço da Serpente. Imagina se o ativismo do Jove fosse além das camisetas politizadas debochadas. Imagina a Guta Regatinha lendo o dia inteiro ao invés de ficar à toa na mansão do seu pai grileiro.
Mas quem se importa com Guta, essa personagem secundária meio sem graça quando se tem Tibério, Maria Bruaca e Zé Lucas de Nada? Apenas o Tadeu - claramente (pantaneiros entenderão). Mas o enredo da Guta me intriga: uma jovem recém formada na universidade, aparentemente progressista, que volta para o pantanal com a missão de abrir os olhos da mãe, Maria Bruaca, sobre a vida dupla do pai. Ao invés disso, acaba orbitando ao redor dos personagens masculinos. Não consegue nem dobrar um pastel. O que ela adiciona de realmente interessante ao enredo?
Em Heartstopper há um personagem que orbita entre os personagens principais de um jeito muito curioso. Isaac Henderson passa toda a temporada lendo. Mal fala. Enquanto vários romances e tretas adolescente se desenrolam na sua frente, Isaac parece estar em um relacionamento monogâmico com suas leituras. Isso não o impede de ser uma companhia agradável e reconfortante para os seus amigos, que jamais o pentelham sobre os seus hábitos compulsivos de leitura.
O Isaac não aparece nas graphic novels que inspiraram o filme, é uma criação da adaptação para a Netflix. Fiquei pensando muito nisso, nessa coisa extraordinária, um personagem incomum criado para ler em cena - o que ele de fato adiciona a história?
Já contei aqui da parte mais perrengue do rolê colombiano que fiz anos atrás. Obviamente não compartilhei a melhor parte da viagem: quando ficamos hospedados em um pequeno hostel-ilha no meio do oceano. A Casa en la Agua foi fundada por gringos, mas era gerida pela população local do arquipélago. Dentre os turistas hospedados, um em particular me chamou atenção.
Enquanto alugamos um caiaque para explorar o arquipélago e conhecer novas ilhas, esse gringo subiu em uma prancha de sup com um livro de umas 700 páginas. Ficou vários minutos boiando em alto mar ao redor do hostel-ilha concentrado no seu calhamaço. Sem se importar com a marola, a música que vinha do bar do hostel, sem se preocupar em usar o sup para conhecer alguma outra ilha; apenas boiava e lia. Tenho essa imagem muito nítida na minha mente.
Não sei quem era essa pessoa. Não lembro de ter trocado ideia com o gringo-surfista-leitor. Lembro apenas que ele estava no grupo de turistas britânicos; britânicos como os personagens de Heartstopper. Essa imagem completamente aleatória e sem qualquer vínculo afetivo, tornou-se como que uma âncora psicológica para mim.
Várias vezes quando eu esqueço de que é possível ser muito feliz, eu lembro desse rolê de caiaque no hostel-ilha e imediatamente o leitor na prancha em alto mar surge, figurando ali no meu cenário imaginário da felicidade possível. A simples lembrança dele me acalma e conforta. Assim como o personagem Isaac de Heartstopper. Só de estar ali acalma e conforta os amigos nas suas neuroses.
Eu queria uma Guta Regatinha lendo camalhaços nas praias pantaneiras. Mal precisaria falar. Julia Dalavia é tão linda, a direção de fotografia da novela é tão linda, o pantanal é tão lindo - pensa só as cenas desperdiçadas. Eu queria saber que tanto livro feminista dizem que ela anda lendo, mas que não aparece em nenhuma cena.
Imagina o impacto de uma novela com personagens leitores em um país em que quase ninguém lê?
Viajei muito nesse impacto que personagens leitores tiveram na minha formação enquanto leitora. Várias dessas reflexões sobre Isaac e Guta me ocorreram quando assisti essa análise sobre as princesas leitoras da Disney. O The Take discute como a Bela de a “A Bela e a Fera", a princesa nerd do livros, a primeira a salvar o príncipe e a única até hoje a herdar uma biblioteca (ai sim!!!), influenciou todo um arquétipo de heroínas leitoras ao longo dos anos. De Matilda, a Hermione Granger até Rory Gilmore, era personagens que se distinguiam pela avidez com que liam. Os livros eram sua fonte de poder, por assim dizer.
Mas onde estão as princesas leitoras agora? Há princesas guerreiras, princesas cientistas, princesas ambientalista, princesas artistas, princesas sem poderes. Nenhuma princesa leitora. Logo agora, nesse momento de redesenho do que significa ser uma princesa.
Acho que vem daí também minha fascinação com as adaptações dos livros da Sally Rooney. Os livros lidos pelos seus personagens em tela servem como um portal para a vida interior dos mesmos. Um portal que uma vez atravessado - uma vez que você conhece o livro lido - revela o que está por trás de cada hesitação, olho virado, lábio mordido, nariz franzido, cutícula puxada ou dedos estalados do personagem leitor.
Assim o romance extrapola para além das páginas, além da tela. Ganha vida.
Mas isso já é assunto para outra newsletter…
LInQsss
(Links Incríveis Que Salvarão a Sua Semana)
Os livros que a Frances lê em Conversation With Friends.
Uma década da outra Fraces, a Frances Ha.
Todos os livros que aparecem em Mad Men. Listão feito pela New York Public Library.
A foto das escritoras brasileiras. Um dia, quem sabe, chego lá.
Não tem muitos leitores no barco brasileiro, mas sempre teremos David Bowie.
Também sempre teremos Seu Jorge cantando David Bowie em barco gringo.
Uma comédia romântica gay que já me fez gargalhar no trailer.
Em busca de alguma biblioteca semelhante a da Bela.
Vai ter Flip em Paraty em novembro desse ano :)