Essa semana está acontecendo o festival de cinema É Tudo Verdade. Desde 2020, o festival acontece em formato online. Notícia boa demais para gente que não mora em São Paulo. Já assisti a documentários memoráveis nas últimas edições online.
O documentário Libelu - Abaixo a Ditadura, vencedor da mostra em 2020, foi um deles. A irreverência dos jovens integrantes do movimento estudantil no fim da década de 1970 é libertadora. Documentário importante para lembrar e renovar o nosso ódio e nojo à ditadura. Nunca, nunca mais. Mas a investigação histórica chega nos tempos de hoje e revela como algumas daquelas lideranças radicais envelheceram mal (Demétrio Magnoli, estou falando de você, sim). Tudo tão sintomático.
Outro documentário que me hipnotizou foi A Ponte de Bambu. O diretor mergulha na memória do jornalista Jayme Martins e sua família, que viveu na China comunista dos anos 1960 até 1989. Ouvir as experiências afetivas e históricas desses brasileiros trabalhando, estudando e crescendo em território chinês em um dos períodos de maior isolamento do país, beira o surreal. Uma família brasileira que virou ponte para a gente entender a maior superpotência no século XXI.
Essa superpotência que mesmo aberta continua sendo um mistério para o Ocidente, é o vilão do documentário que vi nesse primeiro final de semana de festival. O documentário When a City Rises é um registro histórico dos protestos ocorridos em Hong Kong em 2019, uma etnografia visual da juventude combativa que cresceu sob o guarda-chuva da democracia e agora se revolta ao ver tudo ruir rapidamente ao seu redor. Enquanto as instituições democráticas se mostram frágeis, a solidariedade da rua emerge como alternativa.
É inspirador testemunhar como cada cidadão de Hong Kong ocupa, quase espontaneamente, uma função no movimento: há o pais que dão carona, os adultos que trazem água e mantimentos para os manifestantes, há jovens que montam barricadas, outros que preparam coquetéis molotov e outros que prestam assessoria jurídica aos manifestantes presos. Há lideranças, mas não há uma única voz carismática que se distingue na revolta da rua.
Fugindo ao culto da personalidade, que tanto as narrativas ocidentais quanto as orientais reforçam quando tentam retratar movimentos sociais, o documentário decide acompanhar a rotina de quatro jovens durante os meses de agitação, até a aprovação da Lei de Segurança Nacional ainda em 2019. Um dos jovens protagonistas do documentário compartilha uma reflexão linda, que acho que resume bem o sentimento de solidariedade que despertou a cidade no pré-pandemia:
Estive refletindo sobre meu papel no movimento e, depois de três meses, ainda não descobri. Costumava pensar que deveríamos ser líderes. Mais tarde percebi que mesmo que tenhamos influência, nem todo mundo te ouvirá. Então pensei em assumir um papel coadjuvante. Hong Kong está cada vez mais perigosa. Quero que os alunos aprendam a se defender.
Quando assume seu papel coadjuvante, o jovem estudante decide dar aula gratuitas de defesa pessoal para os manifestantes que ocupam a linha de frente do movimento. Fiquei pensando o quão bonito isso era. O protagonista dessa História, afinal, é a luta pela democracia, pela autonomia de Hong Kong. Todos os outros, mesmo quando protagonistas de um documentário, mesmo enquadrados como líderes perigosos pela China, mesmo presos; são apenas os coadjuvantes dessa luta, são aquelas personagens que estão ali para tornar a democracia possível.
Em um mundo que nos inunda de slogans pressionando a gente a assumir o papel de protagonista das nossas vidas, é uma reviravolta irreverente assumir seu papel secundário. Traz uma possibilidade real de fugir desse pacto narcisístico que aderimos estimulados pelas redes sociais e que sequestrou nossos diálogos reais - tudo em detrimento da nossa saúde mental, ambiental e democrática.
O homenageado dessa edição do festival, Mark Cousins, relembra o que o diretor indiano Anand Patwardhan disse em uma coletiva de imprensa convocada para defender o assassino de um ativista secular:
O ‘estou aqui’ de Patwardhan poderia ser o lema de documentaristas no seu ápice.
Diminuir a vontade de ser famoso por quinze segundos e aumentar a vontade de simplesmente estar aqui - é para isso que assistimos a documentários.
📌 LInQsss
(Links Incríveis Que Salvarão a Sua Semana)
No episódio mais recente de Além do Meme, o Taca-le Pau Marco Véio, resume bem o que é a fama: uma coisa que enjoa.
Já assistiu ao impactante This is Not America? Prepare-se pois seu cérebro vai sacudir pesadão. Algumas referências explicadas nesse fio do Twitter.
Ouvir Débora Diniz sobre o seu novo livro. Que privilégio.
Estou lendo Rastejando até Belém, da Joan Didion - finalmente!
A incomparável Lygia Fagundes Telles se encantou. Ouvir sua voz e conhecer melhor sua história me deixou com vontade de retomar a leitura de As meninas. Ela me lembrou que a literatura é também uma forma de amor.
Essa semana está acontecendo o 18º Acampamento Terra Livre em Brasília e você pode apoiar e acompanhar nas redes sociais da APIB.
Ah, vocês viram os micos usando a passagem de fauna na BR-101? Emocionei.
Enquanto isso, vou treinando o passinho de Envolver do meu jeitinho…
#19 falível e intranquilo
Amei as dicas, Amandinha <3