No início do ano, em algum almoço de domingo, gastei um bom tempo dissecando detalhes da minha obsessão com a obra da Elena Ferrante para a minha sogra, que me interrompeu com um aviso: eu estava intimada a comentar o livro no encontro do clube em meados de 2022. Estou bem longe de ser uma Fabbiane Secches, comentei. Mas a intimação estava feita.
Essa é a razão mais pragmática por trás do convite. Não me contenho, há algo de estranhamente comovente nesse encontro com outra geração de leitoras. Algo que nem mesmo a minha sogra tenha percebido quando decidiu me convidar para comentar justamente o segundo livro da tetralogia napolitana, aquele sobre a juventude.
Não previa que o ano fosse correr tão rápido. Eis que me encontro desmarcando compromissos laborais para passar uma tarde ensolarada de segunda-feira entre cafézinhos e bolinhos (na sua maioria com ameixas e uvas passas, claro), discutindo a adolescência de Lenu e Lila na Nápoles dos anos 1960 com as leitoras septagenárias do primeiro clube do livro fundado em Brasília.
Sou uma leitora de Ferrante geração millenium, o que significa que a voracidade com que li a tetralogia só se assemelhou ao meu deslumbramento de crescer junto com Harry Potter (não fui a primeira nem serei a última ferranter a fazer essa analogia capenga). Cresci com um medo difuso de que o atentado do 11 de setembro de 2001 pudesse se transformar em uma guerra de proporções mundiais. Mas também comi muito danoninho vendo xuxa park para acreditar que fosse possível existir sem essas comodidades classe média anos 1990. Mané guerras, bora consumir para esquecer, para crescer, para progredir, para selar novos acordos de paz, para entrar na comunidade global.
Lenu e Lila nasceram em 1944. Em um bairro inominável de uma Napóles pós Segunda Guerra Mundial, mas ainda assombrada pelo fascismo. Se são construções fictícias de pessoas reais, como muitas vezes parecem ser, suas inspirações vivas estão hoje com 78 anos de idade. Se tivesse que apostar, diria que 78 era a idade média das mais de vinte senhoras ali presentes, comendo canapés naquela sala ensolarada, ampla mas sufocada por uma enorme estante de mogno, apinhada de livros de capa dura, porta retratos antigos, bibelôs religiosos e de gatos egípcios.
Em algum momento, a dona da casa mostrou seu álbum de casamento às amigas presentes. Aquela senhora de cabelo raspado e encurvada, cambaleava energeticamente seu vestido longo para distribuir as fotos preto e branco de uma noiva majestosa. Lembrei de Lila. "Eu era tão linda, nem parece que sou eu - não é mesmo?", ouvi de esguelha o auto elogio ao passado acompanhado do auto desprezo ao presente. É mesmo, pensei. Imediatamente disfarcei minha perplexidade silenciosa.
A anfitriã nem reparou. Continuou a rir com as suas amigas.
Percebi que ela não falava com saudosismo apenas da sua festa de casamento. Imaginei que talvez, como Lenu, ela poderia estar secretamente recordando o melhor verão de sua juventude. Seja em Guarapari ou em Ischia, no mar que as amigas geniais navegaram na ânsia confusa de adiar a sua inevitável transformação em mulher - o que quer que isso signifique.
Reler História do Novo Sobrenome após ler toda a tetralogia tem um gosto ainda mais agridoce. Apesar das conquistas profissionais futuras, dos amores realizados e dos emaranhados familiares; nada jamais parecerá tão genuinamente belo na história dessa amizade quanto aquele fio de felicidade que se desenrolou no verão em Ischia, o verão em que Lenu, Lila e Nino mergulharam como um só organismo por um breve instante.
Depois tudo se despedaça. Tudo envelhece.
“Eu não gosto da Lila”, disse uma das leitoras mais enfáticas. “Com certeza foi um homem que escreveu esse livro", disse, para meu espanto, outra leitora incomodada com a secura agressiva de Lenu ao relatar suas aventuras amorosas. Recordei que a misteriosa escritora italiana é mestre em nos causar estranhamentos com a linguagem familiar e expor desconfortos com os papeis de gênero que assumimos muitas vezes de forma irrefletida ao longo da vida. “É uma obra ressentida”, disseram outras leitoras do clube do livro. Concordei. É também o que move a escrita de toda a tetralogia - Elena confessa nas primeiras páginas do primeiro livro.
Aquilo me comoveu. Aquela recusa insistente em acessar a juventude com olhos não românticos.
Coincidência ou não, chegou na minha correspondência Envelhecer é para as fortes, de autoria da Helena Celestino. Em seu primeiro livro, a jornalista carioca decidiu contar a sua história e a de suas amigas, mulheres que estiveram no olho do furacão revolucionário que foi 1968. Seja no Rio de Janeiro, em Santiago, ou especialmente, em Paris.
O livro de Helena nos recorda que ainda não conhecíamos o exílio imposto pela ditadura militar no Brasil do ponto de vista das mulheres. Para variar, silenciadas. Afinal, “na anistia os homens chegaram como heróis; já as mulheres chegaram como loucas, quase putas", comentou durante um webinar organizado pela livraria Dois Pontos, carregando no sotaque carioca arrastado de quem tira onda de qualquer coisa.
Agora todas as loucas, as quase-putas, as revolucionárias estão contando suas histórias. Todas as suas amigas da geração de 68 estão escrevendo. Como Helena, querem contar o que se passou no íntimo, o medo e a superação do medo no cotidiano - sem muito romance.
Foram elas também que entraram de braços dados na Cinelândia durante as manifestações do #EleNão em 2018, reproduzindo a imagem histórica das atrizes em passeata contra a censura realizada também no centro do Rio, 50 anos atrás. Juntas fundaram o coletivo Peitamos!, relembrando a todas que romper os paradigmas patriarcais é um trabalho ininterrupto e urgente.
Estou triste, triste, triste como devem estar todos que amam a revolução. Me confronto diariamente com três problemas simultâneos, a pandemia, Bolsonaro e a velhice.
Cheguei ao clube do livro curiosa pelas fagulhas de memórias que História do Novo Sobrenome poderia ter disparado. Acabei rindo do absurdo da velhice com aquelas leitoras implacáveis.
Me arrependi por falar demais. Helena Celestino me recordou que eu poderia ter feito perguntas melhores. Queria poder ler a história por trás de cada foto preto e branco. Compartilhar tristezas simultâneas e contemporâneas.
Mergulhar no mar ferrante e nadar até o fundo. Colorindo tudo sem medo.
Todas as fotos dessa edição eu copiei desse fio que a Marina Amaral fez no seu perfil do Twitter para divulgar seu novo livro, A Woman’s World.