O último livro de 2022 foi recomendação de mil e uma newsletters favoritas. Queria ler sobre Buenos Aires, mas não resisti a proposta de Lauren Elkin em Flanêuse - mulheres que caminham pela cidade em Paris, Nova York, Tóquio, veneza e Londres. Levei na mala e roletei pela cidade com o livro. Sentei em cafés sozinha, apenas para ler.
Descansando nos bancos das praças públicas da maior cidade da Argentina, fiquei inspirada pelas caminhadas da escritora americana pelas metrópoles do primeiro mundo. Senti-me, como ela, uma subversiva por andar sozinha onde desconheço a língua, o mapa, as pessoas. Por instantes, estive perdida e não me preocupei.
Nunca fui à Paris Jean Rhys, George Sand e tantas outras andarilhas-escritoras-artistas citadas ou não no livro. Mas estava roletando na autodenominada Paris da América do Sul. Admirando as varandas art deco e desviando de coco de cachorro nas calçadas. Impressionada com essa tal liberdade de ser uma anônima caminhante.
Perguntei a um francês que conheci no curso de espanhol se a comparação fazia sentido. “É assim também em Paris? Você sente que a cidade te convida a caminhar?”. Afinal, era isso que a autora americana vivendo na França me contava de sua experiência. Ele apertou os olhos considerando a hipótese e respondeu que a capital portenha era diferente.
Isso ele nem precisava dizer. Elkin me havia me oferecido todo um repertório para entender o ímpeto de andarilha que a cidade de Cortazár me causou. Mas uma hora o seu eurocentrismo romântico me cansou. Mesmo encantada com as descobertas literárias, fiz uma pausa. Deixei o livro de lado.
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Encontrei Las cosas que perdimos en el fuego de Mariana Enríquez em uma livraria de esquina na Recoleta. A jornalista e escritora argentina me ajudou a compreender a minha nem tão peculiar tensão ao roletar sozinha em uma cidade grande da periferia do capitalismo pós-industrial. A violência desumana da pobreza e o horror grotesco da desigualdade em cada rua degradada; estão sempre a espreita, prontos para assustar ou agredir.
É possível sentir no ar uma paranoia generalizada de uma sociedade que busca superar os anos de violência ditatorial, que além da miséria, deixou como legado ruínas e fantasmas. Buenos Aires é um cenário perfeito para o realismo fantasmagórico. Um dos pontos turísticos mais visitados de cidade, inclusive, é o cemitério. Para meu espanto, tomei várias cervejas mirando lápides magníficas de gente importante. Lendo o terror quase surreal da cidade desvendado pela ótica de Enríquez, reconheci o cenário.
Suas histórias macabras não têm final. Talvez porque o medo não desaparece mesmo com a promessa de democracia. Quem continua a desaparecer são as pessoas. Seja pela dinâmica urbana brutal, seja pela ação direta dos personagens.
Quem decide, no último conto, retomar a narrativa que servia à violência patriarcal são as mulheres. Dessa vez elas reclamam o espaço público da maneira mais tenebroso possível, ateando fogo em si mesmas. Assim, libertando-se do que a mais assustam desde tempos imemoriais, os homens.
“—Las quemas las hacen los hombres, chiquita. Siempre nos quemaron. Ahora nos quemamos nosotras. Pero no nos vamos a morir: vamos a mostrar nuestras cicatrices.”
Mariana Enríquez
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Retomei a leitura de Flanêuse na parte em que a Lauren Elkin conta de sua temporada desastrosa como andarilha em Tokyo, uma cidade em que não domina nenhum código. Já estava em Brasília, onde as distâncias enganam e o carro é rei. Li para caminhar.
Tinha altas expectativas para a temporada asiática da autora. Então, mal julguei sua inabilidade em aproveitar a temporada no Japão, o país onde bebês de dois anos vão a pé fazer o mercado sozinhas (se está na televisão é verdade). Ainda que consiga trabalhar no limite da romantização do estilo de vida europeu nos outros capítulos, a antipatia da escritora andarilha pela cultura japonesa me constrangeu.
Mas sem querer dirigir na capital brasileira planejada, compreendi sua inadequação. Entendi Elkin. Assim como ela, havia aprendido “a desconfiar de uma cultura totalmente baseada em veículos; uma cultura que não anda a pé é ruim para as mulheres”.
De volta à capital brasileira dos carros, senti-me uma estrangeira na minha própria cidade. Lembrei das mulheres de Enríquez que se mutilam para caminhar em paz. Pensei nas possibilidades mutiladas por rodovias.
Para a escritora americana que segue os rastros de andarilhas literárias, caminhar na cidade pode ser uma experiência de expansão dos horizontes para as mulheres. Mas como alertaria a autora argentina que invadiu meus pesadelos, é também nesse movimento, quando damos conta da extensão da nossa cegueira, que surge o horror.
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Descansei os pés e maratonei a segunda temporada de The White Lotus; uma sátira perspicaz em torno do sexo e suas dinâmicas de poder. Na paisagem dos super ricos de férias na Itália, a violência e a imoralidade é sublimada pela arte e pelos prazeres burgueses de um resort all-inclusive. Mas as tensões entre os personagens vão crescendo e vemos repetidamente cenas rápidas do mar mediterrâneo revolto e do vulcão em atividade no horizonte.
Não por acaso, mesmo quando os ricaços saem dos perímetros do hotel, poucos são os momentos em que os vemos caminhando pelas ruelas italianas. Quando saem, os turistas americanos têm destino certo e hora para voltar a para o jantar no restaurante do White Lotus italiano.
Vemos apenas um único passeio errante, realizado por Harper, personagem interpretada por Audrey Plaza. Fora do luxoso hotel (e do alcance de seu marido), ela caminha em Noto ao encontro da sua mais nova amiga. Nesses poucos segundos, acompanhamos estranhamente tensas o seu sufocamento pelo olhar masculino.
A cena se passa na mesma escadaria em que a Monica Vitti foi cercada por homens em L'Avventura (1960). Uma reprodução fidedigna a cena do filme franco-italiano. Dirigido por Michelangelo Antonioni, L'Avventura é o primeiro filme de uma trilogia sobre a incomunicabilidade na sociedade moderna. Também poderia dizer que, como o seriado da HBO Max, é sobre a impossibilidade do amor.
É curioso que seja Harper a personagem escolhida para refazer os passos da memor’ atriz italiana, tão reverenciada por Tânia, personagem da memorável Jeniffer Coolidge. É intencional a personagem mais intelectual reviver o sufocamento de ser observada como experimentou Vitti. Somente retoma o fôlego com a ajuda de Daphne, a madame superficial de aura (e sensualidade) inabalável. Um prenúncio da sua tragédia.
Não vemos mais cenas perigosas mostrando a experiência feminina de caminhar sozinha. Ao notar estar sendo observada, estaria Harper com medo ou excitada? Ou ambos? A mulher na rua, ainda uma figura instável.
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De modo inverso, Sophie Calle criou um jogo para seguir um homem pelas ruas de Veneza. Foi Lauren Elkin que resgatou em Flanêuse a experiência da artista francesa enquanto observadora. Caminhar para espiar e coletar dados. Um jeito peculiar de se perder na cidade.
“Vejo-me na entrada do labirinto pronta para me perder nessa cidade e nessa história", revela Calle (nome que traduzido diretamente para o espanhol significa rua) em seu diário, "submissa". Vivia um experimento artístico questionando o que havia de subversivo em ser uma seguidora, ao invés de uma líder.
A lembrança de outro tipo de flanêuse menos aterrorizante, mas tampouco menos vulnerável, me fez voltar a leitura de Lauren Elkin. Mesmo após o desastre japonês, insisti em terminar o livro - ainda bem. Sinto que vou voltar a esses rolês muitas vezes por aqui.
Austin Kleon avisou sobre livros que possuem uma força centrífuga. As histórias que te lançam a busca de outros textos e referências na maioria das vezes não são as melhores leituras. Mas no caso de Flanêuse, largar o livro significa que ele funciona em seu propósito: inspirar mais mulheres caminhantes. Apesar dos temores.
“Somente tomando consciência das fronteiras invisíveis da cidade é que podemos desafiá-las. Uma flanêrie feminina - uma flâneuserie - não se limita a mudar o modo de nos mover no espaço, mas intervém na organização do próprio espaço. Reinvindicamos nosso direito de perturbar a paz, de observar (ou não observar), de ocupar (ou não ocupar) e de organizar (ou desorganizar) o espaço conforme nossos termos.”
Lauren Elkin, Flâneuse